O presente mais ansiado de 2020 foi entregue logo após o Natal e com ele abre-se, como referiu a ministra da Saúde, “uma janela de esperança”. Já começaram a chegar, a ser distribuídas e administradas as primeiras doses da Comirnaty, a vacina contra a COVID-19, desenvolvida pela Pfizer-BioNTech. A logística sai dos bastidores e assume agora um papel fulcral, naquela que é uma corrida contra o tempo e contra o vírus.

O aeroporto de Bruxelas-Zaventem, com infra-estruturas especializadas, é peça fundamental neste desafio logístico, já que funciona como a porta para a entrada e distribuição das primeiras vacinas contra a COVID-19 para a União Europeia (UE).
Depois de aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) o protótipo da vacina Pfizer-BioNTech, a presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, garantiu na quinta-feira, dia 24 de Dezembro, na sua conta no Twitter que “nos dias 27, 28 e 29 de Dezembro a vacinação vai começar em toda a UE” e assim está a acontecer.

A primeira vacina a chegar aos europeus, a Comirnaty, da Pfizer-BioNTech – que, juntamente com a Moderna, foram até agora as únicas que solicitaram a aprovação da EMA- é fabricada na província belga de Antuérpia, especificamente na cidade de Puurs, a cerca de 35 quilómetros de Zaventem.

“Nos últimos dez anos, o aeroporto de Bruxelas esteve muito activo e especializado na manutenção de vacinas (…), a vacina do Ébola é um exemplo”, explicou em entrevista à Efe o chefe das redes de carga e produtos em Zaventem, Nathan de Valck, que, graças em parte à forte indústria farmacêutica do país, destaca a “reputação” do aeroporto como “a porta de entrada preferida para estes produtos na Europa”.

Como sublinhou De Valck, um dos desafios da infra-estrutura aeroportuária é adaptar os requisitos de transporte e armazenamento às características das vacinas, para as quais o aeroporto de Zaventem já possui três “tipos padrão” de armazenamento: à temperatura ambiente (15-25 ºC), frio (2-8 ºC) e abaixo de 0 ºC. Mas, para se adequar às particularidades das possíveis vacinas contra o COVID-19, o sector de carga teve que fazer “um acompanhamento minucioso junto dos fabricantes”, sublinhou o responsável, que garante que, além da Pfizer, mantém contacto com uma “grande lista” de empresas farmacêuticas, onde se incluem Moderna, AstraZeneca, GSK-Sanofi, Johnson & Johnson ou Novavax.

Essa dificuldade é aumentada quando, em vez de uma ou duas vacinas, estão, actualmente, a ser desenvolvidas e testadas mais de 250 vacinas em sete plataformas, segundo um relatório conjunto da DHL e da McKinsey & Company. De realçar que só Portugal tem acordos assinados com seis fabricantes: AstraZeneca, GSK-Sanofi, Johnson&Johnson, CureVac, Moderna e, claro, Pfizer-BioNtech. Não sendo já de si exigente q.b. a existência deste número considerável de fabricantes envolvidos, as diferenças entre as vacinas fazem com que este desafio seja ainda mais complexo, com a proposta da Pfizer-BioNtech a ser a mais exigente, pelas temperaturas de conservação que requer.

No caso de Portugal, as primeiras 9750 doses da vacina entraram no país pela fronteira de Vilar Formoso e foram transportadas até um armazém localizado em Montemor- o-Velho, que será o único armazém central da operação, e destinam-se aos profissionais de saúde dos centros hospitalares universitários do Porto, São João, Coimbra, Lisboa Norte e Lisboa Central. Entretanto, este lote de 9750 doses será reforçado com a antecipação da entrega de mais 70.200 doses, elevando o total disponível para administração até ao final do ano para 79.950 vacinas, segundo o Ministério da Saúde.

Entre Dezembro e o primeiro trimestre de 2021, que corresponde ao período da primeira fase definida pela task force responsável pelo plano de vacinação, Portugal espera receber 1,2 milhões de vacinas, distribuídas por três períodos: 312.975 doses no acumulado de Dezembro e Janeiro, 429 mil doses em Fevereiro e 487.500 em Março.

 

Algumas normas da logística e distribuição

As vacinas são recepcionadas num único armazém central, em Montemor-o-Velho, devidamente licenciado pelo INFARMED para a Distribuição por Grosso de medicamentos conservados à temperatura de frio. São transportadas em caixas térmicas, a temperatura ultrabaixa (ULT, -90ºC a -60ºC), sendo que cada contentor de expedição contém 5 tabuleiros e cada tabuleiro (embalagem secundária) contém 195 frascos para injectáveis multidose e cada frasco multidose (embalagem primária) de 0,45 mL de solução da vacina concentrada para diluição com 1.8mL NaCl 0.9%, permite a reconstituição de 5 doses de 0.3mL.

Após o recebimento e armazenamento central nacional, as caixas térmicas são inspeccionadas para confirmar se todos os tabuleiros foram recepcionados, não podendo empilhar ou colocar objectos sobre a caixa térmica original. Em seguida, há que verificar o dispositivo de monitorização da temperatura que se encontra no topo da caixa térmica e desactivá-lo. Os centros de armazenamento são responsáveis por continuar a monitorizar a temperatura de armazenamento da vacina com um novo dispositivo de registo da temperatura. Posto isto, há que remover imediatamente os tabuleiros (embalagem secundária das vacinas) da caixa térmica, sendo que os tabuleiros fechados podem estar a temperatura ambiente (<30°C) até ao máximo de 5 minutos, para transferência entre os ambientes de temperatura ultrabaixa e não podem abrir-se os tabuleiros que contêm os frascos nem remover os mesmos até ao dia planeado para o seu descongelamento.

O cumprimento estrito das normas relativas à temperatura é fundamental para não comprometer a integridade da vacina. Há que manter os frascos nos tabuleiros, em arca de temperatura ultrabaixa (-80ºC a -60ºC) e protegidos da luz até à data da sua distribuição ou administração. Por outro lado, quando os tabuleiros com os frascos são devolvidos à temperatura de ultracongelação devem permanecer nesse ambiente pelo menos 2 horas antes de serem removidos novamente. Depois de descongelados, os frascos não podem voltar a ser congelados e a validade do armazenamento nestas condições de temperatura ultrabaixa é de 6 meses.

Não estando disponível uma arca de temperatura ultrabaixa, a caixa térmica pode ser usada como armazenamento temporário, se reabastecido com gelo seco, de acordo com instruções específicas. A caixa mantém uma temperatura entre -90ºC e -60ºC, sendo que o armazenamento dentro deste intervalo de temperaturas não é considerado um desvio das condições de armazenamento recomendadas. As normas recomendam ainda que o contentor não seja aberto por mais de 3 minutos de cada vez e não mais de 2 vezes por dia. Caso este seja usado como armazenamento temporário, deve ser inspecionado e reabastecido com gelo seco no intervalo de 24 horas após a sua recepção e depois desta data, de 5 em 5 dias, até um máximo de 30.

Circuito de distribuição a temperatura ultrabaixa: transporte de -90ºC a -60ºC
  • Os tabuleiros são retirados da arca de ultracongelação e reacondicionados em caixas térmicas qualificadas para o transporte à temperatura de -90ºC a -60ºC.

  • Os tabuleiros devem ser acondicionados em caixas e transportados mantendo os frascos na vertical e de forma a evitar oscilações.

  • As vacinas poderão ser transportadas a -90ºC a -60ºC, nas caixas térmicas qualificadas para transporte, até às instituições que disponham destas condições de conservação.

  • Proceder ao descongelamento e uso, rotulando os tabuleiros ou embalagens mais pequenas com a data e hora de limite de utilização, até 120 h (5 dias).

 

Circuito de distribuição refrigerado: transporte de 2ºC – 8ºC
  • O circuito refrigerado deve ser sempre assegurado de forma contínua e tendo em conta que a rota de transporte total no circuito de distribuição não pode exceder as 12h.

  • Os tabuleiros ou as caixas contendo frascos, após a retirada do congelador, devem ser rotulados com a data e hora da retirada do congelador e com a data e hora limite de utilização, até 120 h (5 dias).

  • Os tabuleiros ou as caixas contendo os frascos são devidamente acondicionados para transporte a 2ºC a 8ºC até às instituições (ARS, ACES, ULS, Unidades Funcionais ou Hospitais) previamente identificadas pelas Administrações Regionais de Saúde (ARS), conforme a organização regional.

  • As ARS são responsáveis pela gestão da distribuição na respectiva área de abrangência.

  • Nos destinatários, as vacinas são transferidas de imediato para o frigorífico à temperatura de 2ºC a 8 °C, devendo os profissionais de saúde responsáveis pela sua recepção verificar a data e hora limite de utilização das mesmas.

 

Diferentes países, diferentes abordagens

A Comissão Europeia deixou margem de manobra aos seus Estados-membros e às task forces de cada país para, em função das realidades e necessidades, avaliarem e escolherem a melhor abordagem logística no que à distribuição das vacinas diz respeito. Um bom exemplo disso mesmo são os dois países ibéricos, já que a estratégia de Espanha nesta matéria é ligeiramente diferente da opção escolhida por Portugal.

Aqui ao lado, é o operador logístico da Pfizer para a Península Ibérica, a ID Logistics, que recepcionou no dia 26 de Dezembro o primeiro lote de vacinas, tendo ainda a responsabilidade de preparar os pedidos e, em menos de 24 horas, distribuí-los a partir do seu centro logístico localizado em Cabanillas del Campo (Guadalajara) por toda a Espanha.

Há mais de 15 anos que o operador logístico gere as operações da Pfizer em Espanha e também em Portugal, um factor que para as autoridades sanitárias espanholas foi decisivo na sua selecção como “fornecedor estratégico”. “O primeiro envio chegou da fábrica da Pfizer na Bélgica, no dia 26 de manhã, às nossas instalações em Guadalajara, sob rigorosa monitorização e acompanhamento”, explicou o operador logístico. A operação obedeceu a “todas as recomendações de segurança ditadas pelo ministério do Interior em coordenação com a Pfizer”. A relação de longa data entre a Pfizer e o seu parceiro logístico revelou-se determinante para a eficiência da operação, como sublinhou o número um do laboratório em Espanha ao salientar que no caso da ID Logistics, a “experiência e a relação estreita que mantemos desde há anos a esta parte facilitaram-nos um processo de enorme complexidade logística”.

O plano do país vizinho prevê que cheguem a Espanha lotes semanais de 350 mil doses durante as próximas 12 semanas, até um total de 4,5 milhões de vacinas. As prioridades no seu plano de vacinação são os profissionais de saúde, residentes e trabalhadores de lares e centros para pessoas com deficiências e dependências.

Planos de transporte e distribuição das vacinas
PERGUNTAS & RESPOSTAS
Com empresas farmacêuticas a anunciarem dados provisórios, mas promissores, sobre a última fase dos ensaios clínicos de vacinas contra a COVID-19, os países começam a pensar nos desafios logísticos associados à distribuição. As cadeias logísticas estão a preparar-se, o melhor que podem, com aquilo que sabem. Numa fase em que ainda há várias incógnitas, trazemos-lhe algumas das respostas que já se conhecem.

Quantas vacinas serão necessárias?
De acordo com a Federação Internacional da Indústria Farmacêutica (IFPMA), a previsão é de que sejam produzidas entre 12 e 15 mil milhões de doses em todo o mundo. Será insuficiente, no entanto, para chegar a toda a população mundial antes de 2023 ou 2024, estima a Duke University, da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, que monitoriza o mercado emergente de cerca de 200 vacinas candidatas.

Todas as vacinas serão transportadas da mesma forma?
Em termos de condições de conservação, os laboratórios estão a preparar dois tipos de vacinas: algumas, como aquela que está a ser distribuída e que foi desenvolvida pela Pfizer e a BioNTech, vão exigir temperaturas de armazenamento muito baixas, até -80°C, enquanto outras poderão ser armazenadas em temperaturas mais convencionais, entre 2°C a 8°C.
O primeiro tipo, que será particularmente difícil de transportar, deverá representar até 30% das doses que serão distribuídas no mundo, estima Mathieu Friedberg, diretor-executivo da empresa de logística Ceva, citado pela agência francesa AFP. Para as restantes, do segundo tipo, será sempre necessária uma logística específica. “Continua a ser [uma logística] farmacêutica e, portanto, é sensível, mas menos técnica do que -80°C”, explica Mathieu Friedberg.

Como vão ser transportadas?
O diretor-executivo da Ceva acredita que cerca de metade das vacinas deverá implicar uma logística que combine recursos aéreos e terrestres, mas tudo depende das distâncias e da urgência do transporte.

Como será organizado o transporte aéreo?
“Será sempre necessário algum tipo de transporte aéreo”, disse o responsável pela frota da Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA), afirmando que o transporte de uma única dose para cada habitante do planeta encheria o equivalente a 8.000 aviões de carga de grande porte. Fazendo as contas para a frota da Air France, por exemplo, os 99 aviões de passageiros de longo curso podem transportar, cada um, mais de 400 mil doses no porão e cada um dos dois Boeing 777 leva mais de um milhão de doses. A queda do tráfego aéreo internacional, devido à pandemia, limitou a oferta, uma vez que 60% da carga é transportada nos porões dos aviões de passageiros e, por isso, a capacidade actual da frota aérea é insuficiente para responder à procura.

Como estão a organizar-se os prestadores de serviços logísticos?
Em Portugal, como noutros países, foram constituídos grupos de trabalho, as chamadas ‘task forces’ a todos os níveis, seja ao nível do Estado, dos sectores e das próprias empresas. A acreditação das empresas para a distribuição das vacinas cabe aos próprios laboratórios. “Uma instituição ou autoridade sanitária de um país trabalha com um laboratório, o laboratório audita e certifica a sua cadeia logística, cabendo-lhe trabalhar com os seus parceiros para que essa cadeia logística respeite todos os critérios”, resume Mathieu Friedberg, da Ceva.

Estará tudo pronto?
“Ainda existem muitas incógnitas”, explica a empresa de logística Geodis, desde as quantidades a serem transportadas, a que temperaturas, de acordo com que horários, com que esquemas de distribuição, entre outras. A propósito dos desafios acrescidos no caso da vacina da Pfizer-BioNTech, Mathieu Friedberg recorda que já existe transporte a -80°C, para o transporte de órgãos. “O que muda aqui é a escala, num período de tempo relativamente curto.”

Apesar das dúvidas e incógnitas ainda existentes, globalmente, os profissionais do sector num aspecto convergem e são unânimes: lá estarão para corresponder.

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