A nova Reforma Tributária brasileira promete pôr fim à “guerra fiscal” que durante décadas distorceu a geografia logística do país, obrigando empresas a localizarem centros de distribuição e fábricas em função de incentivos regionais — e não da eficiência operacional. Mas esta transformação estrutural vai muito além do Brasil: é um alerta sobre como a fiscalidade molda as cadeias de abastecimento e como a simplificação tributária pode tornar as operações mais racionais, sustentáveis e competitivas.
Num mundo em que a eficiência operacional é o novo diferencial competitivo, poucas áreas influenciam tanto a configuração da cadeia de abastecimento como o sistema fiscal.
A recente Reforma Tributária brasileira, ao substituir uma teia complexa de impostos por um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), é um exemplo emblemático de como uma decisão política pode reconfigurar toda a lógica de planeamento logístico de um país.
Durante décadas, as redes de distribuição no Brasil foram fortemente condicionadas por incentivos fiscais regionais.
Estados competiam entre si oferecendo benefícios de ICMS para atrair centros de distribuição, fábricas e investimentos, fenómeno conhecido como “guerra fiscal”.
O resultado era uma malha logística fragmentada, muitas vezes ineficiente, onde a localização dos armazéns respondia mais à tributação do que à proximidade do mercado consumidor.
A reforma muda radicalmente este paradigma ao transferir a tributação da origem para o destino.
Ou seja, o imposto passa a incidir onde o consumo efetivamente ocorre, não onde o produto é fabricado ou armazenado.
Essa simples mudança elimina o incentivo à localização “artificial” de centros de distribuição e força as empresas a redesenhar a sua rede com base em critérios de eficiência operacional, custos logísticos reais e nível de serviço.
Impacto sobre o desenho da cadeia
Para o setor de supply chain, as implicações são profundas.
A eliminação das distorções fiscais abre espaço para um desenho mais racional da malha logística, aproximando os centros de distribuição dos mercados de consumo e reduzindo o lead time médio.
O transporte, por sua vez, ganha em previsibilidade e competitividade, já que o crédito fiscal passará a ser integralmente recuperável em serviços essenciais como combustível, pneus e manutenção.
Do lado da armazenagem, a simplificação tributária reduz a necessidade de manter grandes volumes de estoque em determinados estados apenas para aproveitar benefícios locais.
Isso permite uma gestão de inventário mais enxuta e responsiva à procura real.
Também as relações com fornecedores ganham transparência: com um IVA plenamente não cumulativo, o foco passa a ser preço, qualidade e viabilidade logística, e não regimes fiscais diferenciados.
Lições para Portugal e para a Europa
Embora o contexto brasileiro seja único, as lições são universais. Também na Europa, e em particular em Portugal, a complexidade fiscal e operacional ainda influencia decisões de sourcing, localização de centros logísticos e fluxos transfronteiriços.
O IVA intracomunitário, os regimes de isenção e as exigências de reporte digital (como o SAF-T e o e-invoicing) representam desafios que exigem coordenação estreita entre as áreas financeira, tecnológica e logística.
Em paralelo, as empresas europeias enfrentam pressões semelhantes: maior escrutínio sobre a rastreabilidade fiscal digital, necessidade de sistemas ERP integrados e crescente convergência entre compliance e eficiência operacional.
Nesse sentido, o Brasil oferece um caso de estudo valioso sobre como a simplificação e neutralidade tributária podem impulsionar competitividade e sustentabilidade nas cadeias de abastecimento.
A reforma brasileira inclui um período de transição até 2033, um horizonte que serve de alerta para qualquer economia em processo de transformação digital.
As empresas terão de investir em sistemas integrados de gestão fiscal e logística, capazes de rastrear créditos de IVA, automatizar cálculos e garantir total transparência entre as áreas financeira e operacional.
Mais do que uma questão de compliance, trata-se de uma oportunidade para reforçar a maturidade tecnológica e organizacional do supply chain.
Em última análise, a reforma marca o fim de uma era em que a vantagem competitiva era conquistada através da “geografia fiscal”.
No seu lugar, surge uma nova lógica: eficiência baseada em dados, tecnologia e proximidade ao cliente.
Portugal e a União Europeia podem não implementar a mesma reforma, mas enfrentam a mesma urgência: a de simplificar, integrar e digitalizar as suas cadeias de valor e de abastecimento para competir num mercado global onde a transparência é o novo motor da confiança.
Ricardo Ekerman, Diretor Executivo | Peers Consulting + Technology