À primeira vista, tudo parece claro: o transitário organiza, o transportador executa e o seguro cobre eventuais danos. Mas, na prática, a realidade jurídica é bem menos linear. Entre cláusulas de exclusão e interpretações ambíguas, muitos transitários descobrem — tarde demais — que a sua apólice de responsabilidade civil não cobre os prejuízos resultantes de serviços subcontratados. Ana Margarida Moura, advogada especializada em Logística e Transporte de Mercadorias, alerta para uma lacuna legal que pode deixar empresas expostas a riscos graves e que o setor não pode continuar a ignorar.

Quem lida diariamente com o setor da logística e dos transportes sabe bem que o core da atividade de uma empresa transitária contende, invariavelmente, com a organização e a mediação dos serviços de transporte entre expedidores e destinatários. No seu dia-a-dia, o transitário subcontrata empresas transportadoras que, por sua vez, realizam os serviços de transporte que lhes são delegados.

Aliás, o próprio Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de julho, que regula o regime jurídico da atividade transitária, prevê taxativamente como área de intervenção do transitário “a mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respetivos contratos de transporte”.

Por outro lado, esse mesmo diploma legal obriga (e bem!) à contratação de um seguro destinado a garantir a responsabilidade civil por danos causados, no exercício da atividade, a clientes e terceiros, estipulando como capital mínimo a quantia de €100.000,00.

E, até aqui, tudo bem! O problema surge (ou poderá surgir) quando, na sequência de um sinistro que ocorra durante o serviço de transporte subcontratado, se verifique a perda ou danos na mercadoria que estava a ser transportada e o cliente vier reclamar do transitário uma indemnização por esses prejuízos.

À luz daquele contrato de seguro, dir-se-ia que o risco por danos causados pelos subcontratados (neste caso, os transportadores) estaria coberto, uma vez que, na grande maioria das apólices, consta uma cláusula que prevê a cobertura da responsabilidade civil “emergente da atividade do Segurado, na qualidade de empresa transitária, por atos ou omissões dos seus representantes ou das pessoas ao seu serviço”, em conformidade com o que obriga o Regulamento n.º 26/2007.

Mas será que está mesmo ou é apenas uma “mão cheia de nada”?

É que, logo abaixo, é comum surgir um outro número, nessa ou noutra cláusula, que prevê que o contrato já não garantirá a responsabilidade decorrente da atividade do transitário, quando este atue como “transportador público rodoviário de mercadorias”.

É certo que um transitário não é um transportador (e esta é uma questão que, por si só, daria “pano para mangas” relativamente àquele que tem sido o entendimento dos nossos Tribunais), mas o que acontece se, no cenário acima descrito, o transitário tentar acionar o seu seguro de responsabilidade civil?

Por experiência e prática corrente, irá garantidamente (vamos dizer em 99% dos casos, embora ainda não tenhamos tido a felicidade de nos cruzarmos com a exceção a esta regra) receber uma resposta negativa por parte da seguradora.

Isto porque a seguradora vai colocar-se à margem do problema, invocando aquela norma de exclusão.

E sabem porquê?
A resposta é simples: porque pode!
(Ou, pelo menos, porque entende que pode, já que juridicamente há muito que se lhe diga acerca da validade destas cláusulas gerais, sobretudo no contexto do seguro de uma atividade tão específica.)

E a utilização desta expressão (“pode”) não é, de todo, inocente. É precisamente neste verbo “poder” que as seguradoras tentam escudar-se, remetendo para o n.º 5 da Norma n.º 2/2007-R, do Regulamento n.º 26/2007, que prevê que “o contrato de seguro pode, mediante convenção expressa, garantir os danos emergentes do incumprimento das obrigações contraídas por terceiros com quem as empresas transitárias hajam contratado a prestação de serviços no âmbito da atividade segura, sem prejuízo do respetivo direito de regresso.”

Por outras palavras: poder até pode, mas não obriga.
E, mais importante: na prática, acontece?

Temos sérias dúvidas, com todas as implicações que este cenário (pode) acarreta(r) para um transitário.

Deixamos aqui esta breve reflexão que, esperamos, sirva de mote para abrir a discussão.
Sem prejuízo das questões de (in)validade jurídica que se possam suscitar quanto a estas cláusulas nos contratos de seguro (e “ai se não se suscitam!”), é urgente trazer este tema a debate, por ser uma questão essencial para o setor que, no limite, pode mesmo paralisar uma empresa transitária, em caso de reclamação ao seguro de responsabilidade civil pela perda ou danos de mercadoria no decurso do serviço de transporte subcontratado.

Ana Margarida Moura, Advogada especializada em Logística e Transporte de Mercadorias | Ana M. Moura Advogados