Mais de 676 milhões de euros. Este é o valor, acumulado a junho de 2025, da poupança gerada pela centralização das compras públicas. Um valor que ratifica a visão do presidente da Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública (eSPap), César Pestana, de que, mais do que uma visão administrativa ou jurídica, a contratação pública beneficia com uma visão estratégica, que gire em torno da importância de gerir com qualidade o dinheiro público.
SCM | A eSPap cumpriu, em junho, 13 anos. Qual o balanço possível da sua missão?
César Pestana | A eSPap é a entidade de serviços partilhados na administração pública no que se refere aos recursos humanos e às tecnologias de informação, mas é também uma central de compras públicas. Surge, em 2012, da fusão de três organismos públicos, nomeadamente a Agência Nacional de Compras Públicas, que havia sido criada em 2007, já numa lógica mais moderna de contratação pública, procurando trazer para o contexto público uma lógica empresarial. Foi esta herança que a eSPap integrou e desenvolveu.
A eSPap é, pois, a entidade gestora do Sistema Nacional de Compras Públicas, também ele criado em 2007, tratando da aquisição de bens e serviços de carácter transversal, como os serviços de limpeza, de manutenção e de vigilância, a compra de computadores, de mobiliário e de viaturas, mas também de eletricidade. Ao serem transversais, estes bens e serviços são igualmente padronizados, pelo que há uma lógica de gestão do volume das aquisições, logo um ganho de escala.
Portanto, criar uma central de compras públicas no contexto destas aquisições faz todo o sentido, dada a correlação entre a característica da despesa e o modelo de governação para fazer essas aquisições. Há um benefício negocial imediato, que é um benefício do poder do mercado, mas não só – há também um benefício que tem a ver com a criação de regras para a utilização dos bens e serviços a adquirir. Há exemplos clássicos: as entidades públicas não podem, de per se, escolher como é que viajam, nem podem comprar os veículos que entendem. A central de compras traz uma maximização do poder negocial face ao mercado, mas também uma disciplina da despesa, porque há limites financeiros e limites orçamentais. A lógica do gestor de compras públicas é, pois, uma lógica de qualidade da despesa.
Esta é a diferença que ajudamos a construir todos os dias. Sempre que desenvolvemos um processo aquisitivo, temos de ter um conjunto de preocupações principais em termos estratégicos. Primeiro, um modelo de governação e de organização da compra muito bem definido. Desde logo, porque há milhares de entidades públicas, todas com características diferentes, com formatos de organização e até modelos legais diferentes. O que faz com que a contratação pública não seja uniforme. Não o é do ponto de vista da capacidade de organização nem da profissionalização de todos os seus intervenientes.
Qual é a dimensão das entidades da administração pública abrangidas por este sistema de compras?
O sistema é composto por um conjunto de entidades vinculadas, o que é muito interessante, porque permite ganhar escala imediatamente. Estou a falar de direções-gerais, de institutos públicos – toda a administração central. Quando lançamos um procedimento para a formação de um contrato, um acordo-quadro ou fazemos a centralização de uma aquisição estamos a envolver logo centenas de entidades que geram milhões de euros, o que permite obter ganhos negociais significativos.
Mas, o sistema também não fecha a porta a entidades que não estão vinculadas e, atualmente, temos quase 800 entidades públicas que se juntaram voluntariamente. É o caso das regiões autónomas, dos municípios e das juntas de freguesia, bem como dos órgãos de soberania. Não sendo obrigados a cumprir as regras da administração, fazem esse exercício. Ao ponto de um terço das contratações do Sistema Nacional de Compras Públicas [SNCP] já vir de entidades voluntárias. Para nós, este é um indicador muito importante, porque, como todos os anos temos entidades a pedir adesão, é sinal de que o sistema está vivo e é benéfico.
(…)
Embora sendo o Sistema Nacional das Compras Públicas, há como que uma empresarialização…
Somos um instituto público de regime especial, o que significa que temos, de facto, um carácter próximo do empresarial. Aliás, na nossa lei orgânica, o decreto-lei 117-A contempla explicitamente essa característica. Daí também que tenhamos três fontes de financiamento: o Orçamento do Estado [OE], os fundos comunitários e a receita própria, sendo que, nos últimos seis a oito anos, temos vindo a trabalhar no reforço desta receita própria, resultante da cobrança dos serviços prestados. Aliás, nos últimos dois anos, os pagamentos dos nossos clientes, digamos assim, que são também entidades públicas, superaram a contribuição direta do OE.
Esta é uma forma de nos aproximarmos do perfil empresarial. Contratualizamos os serviços prestados, estabelecemos níveis de serviço e faturamos, mediante a contrapartida de um preço que é pago pelos nossos clientes. No caso do Sistema Nacional de Compras Públicas a contrapartida financeira decorre também dos serviços prestados aos fornecedores, na medida em que há um fee que pagam à eSPap pela disponibilização de ferramentas e de contratos. Do ponto de vista dos fornecedores do Estado, é mais interessante relacionarem-se com uma entidade do que com três mil a que têm de fazer três mil propostas diferentes.
(…)
Em que medida os acordos-quadro contribuem para maior transparência das compras públicas?
A partir do momento em que os acordos-quadro estabelecem um modelo para relações contratuais futuras, já estão a contemplar quem são os fornecedores, quais são os serviços, quais são os preços máximos, qual é a qualidade associada aos serviços. No fundo, estamos a antecipar a litigância: os fornecedores podem desafiar o processo, mas, quando fechamos o catálogo das compras públicas, e porque vigora no máximo por quatro anos, a litigância diminui, pois as regras estão definidas. E a transparência também abrange as entidades públicas, dado que não podem comprar de qualquer maneira, não podem estabelecer regras que não estejam já no formato contratual.
Além disso, temos uma segregação de funções na própria eSPap, nomeadamente entre quem faz o pré-contratual e quem faz a gestão contratual. E, por sermos um instituto público, com a dimensão que temos e com esta atribuição que temos, estamos sujeitos a um escrutínio muito reforçado. Acresce que a própria contratação pública obriga a um conjunto de regras que passam pelas declarações da não existência de conflitos de interesse, até à constituição de júris em que ninguém toma uma decisão sozinho: enfim, há um sistema muito alargado de pesos e contrapesos para garantir que os processos são corretamente conduzidos.
E há uma coisa de que, às vezes, não se tem consciência: é que a transparência custa dinheiro. Na contratação pública, todos estes processos implicam uma organização de trabalho e um envolvimento de recursos muito superior ao setor privado, onde compro e não tenho de publicar um relatório de decisão e onde não sou desafiado porque sou uma entidade privada, o dinheiro é da entidade privada e, desde que cumpra a lei, está tudo certo. Costumo dizer que o dinheiro público não é igual ao dinheiro privado, apesar de serem as mesmas notas: porque o dinheiro público tem uma responsabilidade de justificação de toda a sua aplicação. E isto tem um peso. E justifica-se que tenha, porque a transparência é fundamental.
Dito isto, algumas vezes, as normas podiam ser mais simples e mais claras. Por exemplo, neste momento temos, por um lado, um mecanismo nacional de anticorrupção que obriga a um conjunto de declarações de ausência de conflitos de interesses, por outro lado, o Código dos Contratos Públicos obriga a ter um conjunto de declarações de ausência de conflitos de interesses, e, por outro ainda, os projetos financiados PRR implicam também um conjunto de formulários e de declarações de ausência de conflitos de interesses. Portanto, no limite, para um projeto, o comprador público pode ter de assinar três declarações de conflitos de interesses. O que pergunto é: porque não é só uma?
Esta entrevista pode ser lida na íntegra na SCMedia News #65.



