Após a minha intervenção em Aveiro, na Cargo Freight Portugal Summit, veio o desafio de escrever um artigo sobre o papel da Flying Sharks no transporte de tubarões, raias, outros peixes e invertebrados vivos por esse mundo fora. Mal sabia eu que estava a escassos dias de ter uma excelente história para partilhar com os leitores da Supply Chain Magazine.
Esta aventura tem o condão de reunir um vasto número de dores de cabeça que já todos enfrentámos – e enfrentamos regularmente – algumas das quais partilhadas na tal palestra que dei.
Tudo começou em junho de 2024, quando o meu cliente e amigo Alon Levy, do Israel Aquarium, em Jerusalém, nos fez uma generosa encomenda que incluía pequenos tubarões ‘pata-roxa’, Scyliorhinus stellaris e Scyliorhinus canicula, bem como algumas raias e variados outros peixes ornamentais oriundos dos Açores e de Peniche. A encomenda incluía ainda pequenos nudibrânquios, Berghia verrucicornis, uma espécie de lesma-do-mar que preferimos só comprar aos amigos da Tropical Marine Centre Iberia (TMC), em Loures, escassos dias antes da expedição, dada a natureza incrivelmente delicada destes animais, que se alimentam exclusivamente de um hidrozoário altamente específico.
Como habitualmente, emiti uma fatura pró-forma relativa aos animais, tanques e air-freight, recebendo os tradicionais 50% poucos dias depois. Entretanto, as capturas correram invulgarmente bem, apesar do cliente mencionar que todos os tubarões e raias tinham de ser nascidos em cativeiro, para cumprir com legislação recente em Israel. Isso criou algumas dificuldades, mas a Flying Sharks tem uma rede de contactos bastante vasta, por isso foi relativamente fácil encontrar estes animais reproduzidos em cativeiro, nomeadamente nos nuestros hermanos de La Coruña e Pontevedra, nos aquários Finisterrae e Museo do Mar de Galicia, respetivamente.
No final do verão estávamos prontos a expedir a carga e até já tinha a declaração de isenção CITES emitida pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). A carta de porte foi emitida para o dia 25 de setembro, aniversário do meu pai, e solicitei a emissão dos certificados sanitários à Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) dois dias antes da partida, já que estes documentos têm apenas 72 horas de validade porque, convenhamos, a autoridade sanitária tem de assegurar o bom estado de saúde dos animais imediatamente antes da partida.
Quando a guerra troca as voltas à logística
Estava então tudo prontinho a seguir viagem quando, como dizem os americanos, os excrementos atingiram a ventoinha… Na véspera da partida, as agressões belicosas entre Israel e o Hamas, particularmente na Faixa de Gaza, intensificaram-se com violência tal, que todas as linhas aéreas cessaram os seus voos para Israel. O nosso estimado Nuno Alexandre, da Nippon Express, confirmou esse cenário pouco simpático e pouco mais havia a fazer do que esperar por novo cessar-fogo e reabertura dos voos. Entretanto, todos os animais capturados nos Açores já estavam devidamente estabilizados em Peniche e esta equipa delineou um plano de manutenção para todos os tubarões, raias, peixes ornamentais e estrelas-do-mar e enviámos um primeiro email à TMC a pedir desculpa e solicitar o adiamento do levantamento dos nudibrânquios. Mal sabíamos nós que seria o primeiro de muitos!
O tempo foi passando e, apesar da ‘dieta’ implementada pela equipa de Peniche, a verdade é que a bicharada foi crescendo. Durante o Natal e Ano Novo enfardaram uns quilos valentes e não tardou muito até ponderarmos arranjar bichos novos e mais pequenos. Aí, tivemos um golpe de sorte, porque o encerramento do Sea Life Centre de Berlim levou o responsável, Martin Hansel, amigo de longa data, a adjudicar-nos vários transportes de pequenos tubarões nascidos neste aquário, que foram cedidos a vários outros. Ditou a sorte que alguns dos pequenos cações germânicos, Mustelus mustelus, fossem cedidos aos dois aquários espanhóis que mencionei atrás, por isso os nossos colegas Inês Gaspar e Miguel Antunes, colocaram umas ‘pata-roxas’ Scyliorhinus stellaris e Scyliorhinus canicula dentro do tanque que montámos na carrinha após a entrega dos cações.
O diabo é que já tínhamos vendido os animais anteriores, por estarem demasiado grandes para serem expedidos, e os novos, que vieram de Vigo, eram uns belos bajolos de 5 quilos cada, ou seja, saiu-nos pior a emenda que o soneto. Ups!
Lufthansa diz “não”, Air Europa entra em campo
Estávamos nós a fazer contas de cabeça e a calcular o volume de água que seria necessário para transportar esta bicharada grandota, quando o Hamas e Israel negoceiam novo cessar-fogo e, de repente, temos novamente luz verde para o transporte. Esta notícia foi recebida com grande alegria por todos, desde o cliente até à nossa equipa, mas os ânimos arrefeceram rapidamente quando a Lufthansa começou a fazer perguntas inéditas na sequência da Packing List que lhes enviámos.
Com perto de uma dúzia de encomendas expedidas anteriormente para Tel Aviv com a Lufthansa, via Frankfurt, usando pequenos tanques adquiridos na Agriloja, ficámos logo desconfiados quando nos começaram a pedir certificados de estanquicidade, teste de integridade e todo um mar de questões às quais já não respondíamos há muitos anos.
Os tanques da Agriloja, com os seus 90 centímetros de diâmetro (no topo) e 70 cm de altura, são absolutamente perfeitos para pequenas raias e tubarões, que viajam confortavelmente em 125 litros de água. A tampa de madeira impermeabilizada é montada por nós e, por baixo da mesma, é aparafusada uma pequenina bomba de arejamento. Metade do volume do tanque é ocupada por água salgada, sendo o restante espaço ocupado por oxigénio 100% puro. Este processo de enriquecimento com oxigénio toma lugar no transporte rodoviário desde Peniche até ao terminal de carga do aeroporto, onde continua até ao último segundo, quando os tanques têm de ser selados antes de passarem para o lado ‘ar’, que nos é vedado.
A rapaziada da ex-Groundforce e Portway é incrivelmente colaborante e deixam-nos sempre ficar no chão até ao último segundo, de forma a garantir que a concentração de oxigénio no tanque está bem acima dos 300%. Quando chega a hora de lhes dizer adeus, selamos o buraquinho por onde passava a mangueira de oxigénio, com um parafuso e silicone, e ligamos a tal bombinha montada debaixo da tampa e que vai dissolver todo o oxigénio à superfície da água dentro desta. Nesse momento deixamos o aeroporto e só nos resta esperar por notícias do cliente, que normalmente confirma 100% de sobrevivência em todos os transportes.
Estávamos a preparar todo este cenário quando se tornou claro que a Lufthansa não estava pelos ajustes e, depois de várias mensagens a pedir mais e mais informação, percebemos que a coisa não ia rolar com estes amigos, pelo que o Nuno Alexandre começou à procura de alternativas. Esta na forma de um excelente voo da Air Europa que liga Tel Aviv diretamente a Madrid. Ora, a capital madrilena dista de Peniche apenas 6 horas, pelo que traçámos rapidamente um plano que envolvia expedir a carga de Barajas, comendo uns bocadillos de jámon pelo caminho.
Entretanto, tornou-se evidente que os pequenos tanques de 90 cm de diâmetro eram demasiado pequenos para as pata-roxas de 5 quilos cada e, por isso, adquirimos uns contentores-palete à Domplex, juntamente com tampas, que vedámos rapidamente com uma quantidade obscena de parafusos, porcas, anilhas e silicone, sujeitando-os ao tilt-test habitual, que visa garantir se o tanque pode ser inclinado 90 graus (!) sem verter uma gota. Apraz-me informar que os tanques passaram o teste com distinção e só faltava, por isso, acordar uma data com o cliente.
O plano de 1 de abril em ação
A data foi definida como 1 de abril, Dia das Mentiras, e, entretanto, já tinha solicitado nova emissão de certificados sanitários na plataforma Certific@+ da DGAV uns dias antes. Na véspera da viagem recordei os amigos da DGAV da emissão dos certificados, pedido que foi respondido com uma daquelas respostas que fazem gelar o sangue: “Isso, desta vez, não é connosco, tem de falar com Torres Vedras.” Liguei para Torres Vedras, onde me disseram “Não sabemos nada disso, fale com Peniche.”DGAV uns dias antes. Na véspera da viagem recordei os amigos da DGAV da emissão dos certificados, pedido que foi respondido com uma daquelas respostas que fazem gelar o sangue: “Isso, desta vez, não é connosco, tem de falar com Torres Vedras.” Liguei para Torres Vedras, onde me disseram “Não sabemos nada disso, fale com Peniche.”
31 de março foi, assim, passado num ping-pong entre Peniche e Torres Vedras, que me levou a adotar o nome da popular canção da Madonna como subtítulo para esta história, porque não importa quantas vezes façamos isto, dir-se-ia que é sempre como a primeira vez…
Já seriam 7 da tarde quando a delegação de Peniche confirmou que faria a emissão dos certificados, que entretanto recebi por email e despachei rapidamente para o nosso Nuno Alexandre e para o cliente.
Traçámos então o magnífico plano para o Dia das Mentiras, que envolvia duas equipas distintas e duas carrinhas, dado o enorme volume de carga a ser transportado.
Toda a equipa de Peniche, liderada pelo meu braço-direito Nuno Rodrigues, começaria a carregar os animais às 9 da manhã, enquanto eu dava aulas na Escola Superior de Tecnologia do Mar, ali ao lado. O embalamento incluía 4 tanques Domplex, com o volume de água calculado cuidadosamente para que o peso total de cada um fosse escrupulosamente 375 quilos. Não esqueçamos que, quando há discrepância entre o peso real da carga e o declarado na carta de porte, esta tem de ser reemitida com o peso certo, tarefa que seria bem difícil a meio da noite em Barajas. Era imprescindível, por isso, que o peso chegasse certinho a Madrid. A mesma equipa teria de embalar também 15 caixas com 47 quilos cada e o plano seria dividir esforços pelas 2 da tarde.
Seria nesse momento que a equipa 1, constituída pelo Nuno e Miguel se montariam numa carrinha com metade da carga, passando pela TMC de Loures para levantar os nudibrânquios, cujo levantamento tinha sido adiado umas 14 vezes entre junho do ano anterior e o fatídico Dia das Mentiras. Apanhariam então o Nuno Alexandre no escritório da Nippon Express, nos Olivais, aproveitando para deixar a um colega um polvo embalado numa caixa, que seguiria na madrugada seguinte para o Sea Life Centre de Weymouth, via Heathrow. Com o Nuno Alexandre a bordo, a carrinha n.º 1 deveria sair de Lisboa pelas 4 da tarde e chegar a Madrid 7 horas depois, à meia-noite espanhola.
Entretanto, eu terminei as minhas aulas às 4 e saltei rapidamente para a carrinha n.º 2. Acompanhado pela Inês, que tinha terminado o embalamento da segunda metade da bicharada, rumámos diretamente a Barajas, onde esperávamos chegar também 7 horas depois, uma vez que se impõe sempre uma paragem para monitorizar o pH, oxigénio, temperatura e amónia da água, bem como atestar de gasóleo barato espanhol, fazer um chichi, comprar um Red Bull e uns cajus, que são a minha dieta principal nestes transportes.
E foi assim que a carrinha n.º 1 e carrinha n.º 2 se encontraram perto de Talavera de La Reina, já perto das 11 horas espanholas. A mim e à Inês calhou-nos a rota norte, pelo meio de Alcains, Monfortinho e outras povoações perdidas no meio das serras da Beira Interior, numa viagem incrivelmente agradável e tranquila.
O descarregamento da carga no terminal da WFS em Barajas foi igualmente tranquilo, embora não tivéssemos as mesmas facilidades que os amigos da Portway e Menzies nos concedem em Lisboa. Mesmo assim, conseguimos sobressaturar os 4 tanques com oxigénio à bruta, despedindo-nos deles pela uma da manhã espanhola, meia-noite em Portugal.
O regresso a Peniche foi novamente repartido por duas rotas, porque este vosso criado dava aulas às 9 da manhã do dia 2 de abril, tal como o Nuno Rodrigues umas horas depois. Viemos então os dois numa carrinha pelas serranias do lindíssimo interior do nosso país, enquanto a Inês e Miguel tomaram a rota sul, por Badajoz, para poderem deixar o Nuno Alexandre na Nippon Express, onde enfrentou um dia inteiro de trabalho.
O mistério dos documentos desaparecidos
A história teria ficado por aqui e foi bem regada com um almoço simpático na Tasca do Joel, onde reunimos toda a equipa e agradecemos o esforço intenso nos dias e meses anteriores, mas… não esqueçamos que a Madonna cantava “Like a Virgin” por algum motivo… e foi mais ou menos isso que aconteceu a meio das minhas aulas dessa manhã, quando o cliente Alon me começou a ligar com insistência. Aparentemente, a veterinária do aeroporto de Tel Aviv não estava contente com o modelo dos dois certificados sanitários enviados na véspera (um para tubarões e raias e outro para os restantes animais) e solicitava quatro modelos novos. “Mas nós usámos os modelos que sempre foram usado!” respondia eu, sem grande sucesso.
Lá pedi à DGAV de Peniche a emissão de novos certificados, mas o pedido foi recebido com pouco entusiasmo porque, convenhamos, os modelos usados eram os corretos e acordados entre as autoridades sanitárias dos dois países. “Explica lá à senhora veterinária israelita…” disseram-me “…que isto não é assim… Há modelos acordados formalmente entre os países e não se pode agora estar a usar o modelo que lhes apetece só porque lhes apetece!”
A quarta-feira 2 de abril foi passada mais ou menos neste ping-pong, mas o melhor ainda estava para vir, quando a carga aterrou em Tel Aviv a meio da tarde e ninguém conseguia encontrar os documentos originais.
Assegurei ao Alon – e ao despachante dele, numa chamada telefónica conjunta – que estava certíssimo da expedição dos documentos, porque eu e o Nuno Alexandre tínhamos verificado uma dezena de vezes que todos os originais estavam dentro de um envelope entregue às mãos do agente de handling em Barajas, a WFS. A grande questão do momento tornou-se então localizar os originais, mas expliquei rapidamente ao Alon que bastaria imprimir novamente todos os documentos que lhe tinha enviado por email e teria, como que por magia, originais novos. A única dificuldade estaria no carimbo e assinatura dos certificados sanitários que, graças a uma enorme dose de boa-vontade por parte da DGAV de Peniche, foram reemitidos com os modelos acordados entre os países, mas em quatro submodelos diferentes, como requisitado. Ou seja, um para os tubarões e raias, outro para os peixes ornamentais, outro para os nudibrânquios e ainda um quarto para as estrelas-do-mar.
Expliquei -lhe que se fossem impressos numa boa impressora a cores, ninguém conseguiria detetar que não eram originais. Entretanto, os originais ‘originais’ estão desaparecidos no limbo logístico que engole estas coisas. Só me resta terminar este relato com uma boa notícia: todos os peixes – e invertebrados – chegaram bem ao seu destino.
A Madonna tinha mesmo razão quando escreveu “I made it through the wilderness, Somehow I made it through” em 1984… Não importa como, apesar de ser sempre como a primeira vez, lá acabamos por meter sempre a carga no destino.
João Correia,
Fundador e General Manager da Flying Sharks
Orador motivacional
Professor adjunto Escola Superior
de Turismo e Tecnologia do Mar