A cada nova convulsão no Médio Oriente, em particular os ataques e contra-ataques entre Israel com os Estados Unidos e o Irão, somos confrontados com uma verdade incómoda: as cadeias de abastecimento globais pulsam a vida económica do planeta, não deixando parte incólume e fazem-nos sempre tremer. E não, isto já não é uma surpresa. Longe vão os tempos em que uma interrupção no fluxo material de bens seria um evento tão imprevisível que nem sabíamos que podia existir. A COVID-19, com a sua brutalidade global, fez-nos o favor de rasgar o véu da inocência. Hoje, estamos mais bem preparados do que nunca, mas não por virtude, antes por absoluta necessidade.

Pensemos na resiliência das cadeias de abastecimento como aquela capacidade de levar um soco e não ir ao chão, ou até de ir, mas levantarmo-nos mais depressa. No início, quando falávamos de resiliência, pensávamos em eventos de “baixa probabilidade, alto impacto” e em certa medida os eventos “unknown unknown”. A resiliência, nesse contexto, foca-se em aguentar o embate, em ter planos de contingência genéricos, em ser ágil para se adaptar a um cenário imprevisível. Não se preocupava em evitar o evento, porque este, por definição, é invisível. A preocupação é com a consequência, fosse qual fosse a origem.

Hoje a conversa muda de tom. Onde está o “unknown unknown” em Ormuz? É o elefante na sala, conhecido há décadas e muito evidente no período mais recente (com a história intrincada que não tenho como objetivo entrar). Uma passagem estreita que liga o Golfo Pérsico ao Mar da Arábia é uma das jugulares do petróleo mundial, Iraniano mas não só. Metade da energia que move os carros, aquece as casas e alimenta as indústrias do planeta passa por ali. As ameaças iranianas, os ataques a navios, incidentes com petroleiros não são novidade. Não são eventos de baixa probabilidade. Já não são “unknown”.

E é aqui que saímos do campo da resiliência pura e dura, e entramos na gestão de risco. O risco, que é a probabilidade de um evento acontecer multiplicada pelas suas consequências. Isto faz com que seja possível quantificá-lo, atribuir-lhe um valor (€/$/…), e com isso, criar um incentivo real para as empresas e países se prepararem. A grande diferença entre resiliência e risco é esta: a resiliência prepara-nos para qualquer soco; o risco, para os socos que já sabemos que podem vir.

Hoje, com os recentes ataques, a situação em Ormuz volta à ribalta, e já ninguém se pode dar ao luxo de a considerar um “unknown unknown”. É um risco conhecido, um “known unknown” na melhor das hipóteses, com uma probabilidade de ocorrência que está longe de ser desprezível.

O Estreito de Ormuz é um caso de estudo vivo desta transição. Pensemos no ano 2019: Em maio, quatro navios, incluindo dois petroleiros da Arábia Saudita, foram atacados ao largo da costa dos Emirados Árabes Unidos. Uma clara sabotagem. Um mês depois, em junho, mais dois petroleiros – um japonês, outro norueguês – foram atacados perto de Ormuz. As imagens dos navios em chamas, a tripulação resgatada, correram mundo.

As consequências? Um salto imediato nos prémios de seguro para navios na região, levando a custos adicionais brutais para todos numa cadeia de abastecimento global. Das transportadoras até ao produto final. Os preços do petróleo dispararam, sentindo-se o medo de uma interrupção duradoura. Como se resolveu? Pela força da diplomacia, pela presença militar dissuasora e pela fragilidade de não querer escalar para um conflito maior que não interessa a ninguém. Tal como se pode ver na imagem abaixo, a maior parte do material transportado tem como destino a Ásia e apenas cerca de 20% para a Europa e sendo que existem limitações à importação a partir do Irão para a maior parte dos países europeus.

Nas duas imagens seguintes podemos ver uma alteração no comportamento comprador da União Europeia no que diz respeito ao Gás Natural e ao Petróleo, com uma redução da dependência das matérias primas com passagem pelo Estreito de Ormuz. Importante salientar a falta de flexibilidade para substituir o Gás Russo que continua a ser uma origem relevante para a UE. No entanto o mundo está ligado, não há uma implicação apenas num bloco geográfico sem afetar outro e isso será mais um elemento que poderá mitigar e aumentar a velocidade de regresso ao estado normal depois desta nova instabilidade.

Talvez este movimento seja uma das grandes contribuições da resiliência: dotar-nos de ferramentas para lidar com a imprevisibilidade. As empresas diversificaram fornecedores, trouxeram parte da produção para mais perto, construíram buffers de stock, investiram em visibilidade das suas redes. Tudo para serem capazes de absorver o choque e minimizar o seu impacto.

Agora, o desafio é diferente. Não é só levantarmo-nos depois do soco, é antecipar de onde o soco pode vir e tentar evitá-lo, ou pelo menos, minimizar a dor. Para o Estreito de Ormuz, isto significa ir para lá da resiliência, pois isso já está feito. Significa gerir o risco ativamente. Implica análises de cenários específicos: o que acontece se Ormuz for bloqueado por 24 horas? E por uma semana? Que rotas alternativas existem, e a que custo? Que stocks estratégicos de energia precisamos de ter? O que vai acontecer ao custo dos materiais que são necessários para não interromper processos produtivos?

A quantificação do risco é fundamental porque traduz a ameaça em números que são mais tangiveis e facilmente reconhecidos pelas partes envolvidas. Ajuda a justificar investimentos em tecnologia, em redundância logística, em stress tests, em pensar.

Quais os países produtores afetados em caso de bloqueio do estreito, e quais os que vão beneficiar do aumento dos preços? É este equilíbrio de vantagens e consequências negativas que vai posicionar politicamente os países e a eventual resposta ao bloqueio.

Para já no terreno em termos políticos as alianças e rivalidades podem, em casos concretos como este, surpreender considerando os interesses. Aliás, as cadeias de abastecimento são um dos fatores essenciais da geopolítica em que se disputam recursos, mercados e a sua movimentação com base em cenários políticos geograficamente considerados. E isto não é nada novo, veja-se a presença do Forte de Nossa Senhora da Conceição em Ormuz.

Chegamos, pois, a uma encruzilhada. A inocência dos “unknown unknowns” ficou para trás. Aliás as cadeias de abastecimento são um dos fatores essenciais da geopolítica e assumirão um papel crucial nas próximas décadas. O futuro das cadeias de abastecimento não se joga apenas na capacidade de resistir ao inesperado, mas na inteligência de antecipar o previsível e exige uma colaboração sem precedentes entre governos de diferentes “origens” e empresas, mesmo que de forma invisível e sem que se perceba bem quando acabou.

João Pires Ribeiro | Doutorado em Resiliência da Cadeia de Abastecimento pelo Instituto Superior Técnico

Nota: O artigo foi inicialmente publicado na CNN Portugal, tendo tido autorização para a sua republicação.