O debate sobre se a tecnologia substituirá as pessoas não é de resposta simples. Idealmente, a tecnologia deveria assumir tarefas repetitivas e monótonas, permitindo que os trabalhadores se concentrem em áreas onde podem gerar maior valor: as tarefas que exigem criatividade, pensamento crítico e competências que a tecnologia (ainda) não domina. Contudo, há um problema urgente: a falta de mão de obra qualificada na supply chain e que altera ligeiramente o panorama. Será que podemos confiar na tecnologia como aliada para colmatar a lacuna ou continuamos a vê-la com desconfiança, temendo que venha a substituir-nos no mercado de trabalho?
O setor da supply chain tem vindo a sofrer uma grave crise de escassez de mão de obra, a nível global. É uma área que não se apresenta como atrativa para os mais jovens, devido ao regime de turnos, salários pouco competitivos, exigência física e, por vezes, ter de estar longe de casa. Para este problema, que deverá ser tido em conta pelas empresas o mais rápido possível, a solução passa por melhorar as condições de trabalho e tentar tornar a área mais atrativa. No entanto, há uma outra que pode ser igualmente útil: colocar a tecnologia ao serviço do setor. A substituição dos humanos pela tecnologia é um tema recorrente e algo polémico. Pode gerar discórdia. Contudo, tendo em conta o estado atual do setor, fica a questão de se a tecnologia irá, efetivamente, substituir os trabalhadores, ou se será estritamente necessária para resolver o problema da falta de mão de obra.
A pandemia de COVID-19 potenciou várias crises de mão de obra. Pensava-se que este problema acabaria assim que as economias estabilizassem, mas tal não aconteceu. Como resultado, as empresas estão a implementar novas estratégias de contratação e retenção, bem como a aplicar tecnologias para compensar a carência de trabalhadores. A Descartes Insights e a SAPIO colaboraram numa pesquisa no sentido de perceber como as empresas estão a atuar face à escassez de mão de obra. Para isso realizaram um inquérito a cerca de 1.000 líderes de supply chain e logística na Europa e América do Norte para dar resposta à questão: “O que estão as empresas de supply chain e logística a fazer para melhorar a produtividade dos trabalhadores, atrair e reter colaboradores, e para encontrar fontes alternativas de mão de obra para mitigar os desafios relacionados com a carência de trabalhadores, hoje e no futuro?”.
De acordo com os líderes de supply chain e logística, a principal estratégia organizacional para melhorar a produtividade dos trabalhadores é a automação de tarefas repetitivas e sem valor acrescentado (54%). De seguida, a otimização de rotas de entrega (54%), e a produtividade móvel para motoristas (45%) foram as escolhas tecnológicas apontadas para mitigar a escassez de mão de obra. Além destes, foram destacados ainda o rastreamento de envios automatizado em tempo real (53%) para mitigar a carência de mão de obra especializada; a flexibilidade no horário de trabalho (35%) e a adoção de tecnologias mais recentes (34%) para atrair mais trabalhadores; a formação no local de trabalho e compensações educacionais (35%); e salários mais elevados (34%) para reter trabalhadores.
Em relação à potencialidade da tecnologia, a maioria dos inquiridos (58%) indicou que os seus executivos corporativos acreditam que a tecnologia é extremamente importante para mitigar o impacto do atual mercado de mão de obra.
Supply chain: um setor pouco atrativo
Qual o cenário em Portugal e na Europa? Há, efetivamente, falta de mão de obra especializada na área da logística? Qual o papel da tecnologia neste problema?
A área de recursos humanos é essencial para dar uma visão mais abrangente sobre o mercado atual e futuro. Andrea Nunes, country manager do Grupo Constant, confirma que as áreas da logística e supply chain estão a enfrentar um “enorme desafio” de escassez de profissionais especializados, inclusive indica que, no final de 2023, a Europa tinha cerca de 1 milhão de postos de trabalho por preencher. “A falta de profissionais qualificados em logística representa um desafio significativo, mas também uma oportunidade para quem procura especializar-se na área. Com a crescente procura, aqueles que investirem na qualificação e atualização tecnológica poderão destacar-se no mercado, e conquistar posições estratégicas nas nossas organizações”, comenta a responsável.
Por sua vez, Tiago Baldaia, business director BPO do Gi Group, não concorda que exista falta de mão de obra. O que é necessário é os empregadores adotarem um mindset diferente do atual. “É inegável que é difícil encontrar um operador logístico português, com o 12.º ano de escolaridade, disposto a trabalhar em regime de turnos com salários que, por vezes, não são os mais competitivos”, afirma, considerando que se pode tornar uma “missão quase impossível”. Contudo, acredita que com a criação de condições adequadas, torna-se “perfeitamente viável” encontrar os recursos humanos certos, incluindo os emigrantes que procuram Portugal. “Para isso é essencial que os cargos de liderança estejam preparados para se adaptar a este novo paradigma, o que inclui, no caso dos trabalhadores estrangeiros não-falantes de português, a capacidade de comunicar o inglês, o uso de sistemas preparados para funcionar em ambientes multilingues, a disponibilização de instalações com refeitórios adaptados a diferentes hábitos alimentares, e o conhecimento sobre a história dos fluxos migratórios como, por exemplo, nos casos de países como a Índia e Paquistão”, refere.
Do lado da Logifrio, Carla Poço, head of HR and Happiness Iberia, indica que o setor da logística ainda é considerado como pouco atrativo para trabalhar, seja pela atividade física que é exigida para realizar as funções, seja pela disponibilidade requerida para este tipo de operação. Destaca alguns desafios que podem ser vistos como entraves para atrair ou reter talento nesta área, nomeadamente o equilíbrio entre a vida profissional e vida pessoal, a impossibilidade de proporcionar o regime de teletrabalho, ou a tendência para centralização de pessoal qualificado na procura de trabalho em zonas urbanas. “Por outro lado, a logística e supply chain fazem parte de um setor que sentiu uma elevada procura de profissionais, e onde a procura é claramente superior à oferta. Este paradigma leva a que as empresas necessitem de se reinventar para que se tornem mais atrativas ao talento humano”, reflete. Assim, identifica a atualização tecnológica do setor como “iminente e inevitável”, não esquecendo a necessidade de contratação de recursos humanos em larga escala, pois considera que “continua a ser fundamental para o sucesso da operação”.
Solucionar o problema da falta de mão de obra na área da logística pode não ser tarefa fácil, mas por algum lado é preciso começar. Hernâni Andrés, managing partner da Build up Value, afirma que “as tecnologias emergentes, como a automatização e a robotização apresentam-se, hoje, como soluções para o problema de falta de mão de obra na logística”. Segundo o responsável, estes avanços, juntamente com a otimização na utilização de sistemas de gestão, como ERP ou WMS, ajudaram não só a eficiência operacional, como também compensaram a escassez de trabalhadores qualificados.
A evolução tecnológica tem vindo a permitir que os gestores percebam que a incorporação de tecnologia nas suas estratégias e operações, mantém os níveis de produtividade neste setor exigente e competitivo. “Os sistemas automatizados de armazenamento e recuperação, robôs móveis autónomos e plataformas baseadas em IA são exemplos de como a tecnologia já está a ser utilizada para colmatar lacunas de mão de obra, especialmente em funções mais repetitivas ou fisicamente exigentes”, acrescenta Hernâni Andrés. Desta forma, aponta algumas tecnologias que terão maior relevância e impacto no futuro da logística: robôs para movimentação de carga para tarefas de força e precisão; IA e machine learning para um planeamento logístico mais avançado, maior previsibilidade e resiliência da cadeia de abastecimento; IoT para rastreamento e monitorização de mercadorias e equipamentos; AR/VR (Realidade Aumentada e Realidade Virtual) no suporte a operações e formação de colaboradores; blockchain para transparência e segurança nas cadeias de abastecimento mais complexas ou globais; e drones e veículos autónomos para transporte e entrega. “Estas tecnologias não resolvem apenas desafios imediatos das empresas, como o da escassez de mão de obra. Representam também uma oportunidade para otimizar processos logísticos, responder a desafios de compliance e contribuir para as suas estratégias de sustentabilidade.” À pergunta inevitável: “considera que a tecnologia venha substituir as pessoas não por eficiência, mas por necessidade?”, o managing partner responde: “Creio que é uma conjugação dos dois. A eficiência enquanto fator de motivação, e a necessidade como um acelerador de decisões. Julgo que a sustentabilidade das organizações reside na resposta certa e equilibrada a estes desafios, tendo em conta outros fatores que possam influenciar”.
Em 10 anos, como estará o mercado de trabalho?
A resposta sobre o futuro ninguém a tem, mas é possível tentar delinear um caminho com base nas tendências atuais e nas de curto prazo. “Nos próximos 10 anos, a área da logística terá menos recursos humanos dedicados a funções operacionais tradicionais e repetitivas, mas terá mais recursos dedicados à realização de funções estratégicas e de apoio à tecnologia implementada”, quem o diz é Carla Poço. Acredita que esta mudança de paradigma irá acelerar a criação de novas profissões centradas na técnica, manutenção e gestão de tecnologia. A chave será que os recursos humanos se adaptem às tecnologias avançadas, e/ou se requalifiquem.
Para Andrea Nunes, do Grupo Constant, o mercado de trabalho estará suscetível, durante este horizonte temporal, a enfrentar várias mudanças e desafios. “Para sermos bem sucedidos neste ambiente em constante mudança é importante desenvolver as nossas competências – e das nossas equipas – e adaptarmo-nos às novas tecnologias e tendências.” Assim, antecipa que o mercado de trabalho passe a exigir, cada vez mais, competências como resolução de problemas, criatividade, pensamento crítico e capacidade de comunicação. “Os empregadores estarão à procura de colaboradores capazes de se adaptarem às novas tecnologias e situações.”
Tiago Baldaia, do Gi Group, considera que o perfil de um profissional de logística do futuro deverá ser “muito mais analítico, com foco no entendimento de linguagens de programação simples”. Já no mercado de trabalho, antecipa que os trabalhos altamente padronizados e repetitivos possam ser uma mais-valia na adoção de processos automatizados. “Certamente haverá um reforço do toque humano em áreas estratégicas, como a relação com o cliente, programação, auditorias de processo, etc.”, acrescenta.
Do lado tecnológico, a visão é bem clara: “os jovens que pretendam entrar na área da logística devem estar preparados para um ambiente altamente tecnológico”, aconselha Hernâni Andrés, da Build up Value. Devem estar familiarizados com ferramentas como WMS, TMS e ERP, bem como desenvolver competências nas áreas de análise de dados, IA, IoT, programação básica e automação.
Não é fácil dar resposta à pergunta “irá a tecnologia substituir os humanos por falta de mão de obra, ou somente pela eficiência operacional?”. No entanto, há algumas lições a retirar daqui. A tecnologia pode ser uma possível solução para colmatar a escassez de trabalhadores, mas pode também ser um aliado fundamental para colaborar com estes. É importante que o talento futuro desenvolva aptidões para saber lidar melhor com a evolução tecnológica, mas é igualmente relevante que as empresas ajustem os fatores de atratividade não só aos recém-chegados, mas a quem já têm dentro de casa. Em vez de substituir, formar e direcionar trabalhadores para funções com maior valor acrescentado será, sem dúvida, uma mais-valia. Para as empresas e para as pessoas.
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