Conhecida a composição do novo Executivo liderado por Luís Montenegro e apresentado que está o Programa de Governo para a atual legislatura, fomos olhar para as grandes medidas preconizadas pelo ministério das Infraestrutura e Habitação, encabeçado por Miguel Pinto Luz, e auscultámos a opinião das principais associações do setor da logística e transporte de mercadorias. Fique a conhecer que apreciação fazem os responsáveis associativos sobre áreas tão determinantes para o setor como infraestruturas e mobilidade, rodovia, transporte ferroviário, portos, transporte aéreo ou logística urbana.

A nível de infraestruturas, algumas das propostas para o setor consistem em “adotar uma estratégia de médio e longo prazo, independente dos ciclos políticos, à semelhança das experiências do PETI3+ (2015) e PNI2030 (2023)”; “promover, através dos fundos europeus, a expansão de infraestruturas de carregamento para veículos elétricos e a hidrogénio nas cidades e criar rede de abastecimento a hidrogénio que permita uma ampla utilização nos transportes de longo curso de passageiros e mercadorias”; e “promover a transferência modal de mercadorias para a ferrovia corrigindo os desequilíbrios na taxação da infraestrutura e aumentando a produtividade e eficiência do transporte”.

Aliada a esta última medida, o Governo delineou propostas para impulsionar o transporte ferroviário de mercadorias, passando por: “rever a aplicação da Taxa de Uso da Infraestrutura para comboios de mercadorias, eliminando a distorção existente relativamente ao transporte rodoviário”; “adotar mecanismos de incentivo à modernização e interoperabilidade do transporte de mercadorias”; e “eliminar custos de contexto, nomeadamente, limitações na formação de pessoal e das condições de operação”. 

Pedro Polónio, presidente da direção nacional da Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM), faz uma apreciação global sobre estas medidas. “Numa primeira análise, parece-nos que o setor do transporte rodoviário de mercadorias é relegado para um segundo plano, face aos demais modos de transporte de mercadorias. Na prática, as medidas de apoio ao seu desenvolvimento e sustentabilidade são diminutas, para não dizer inexistentes”. 

A propósito da proposta que sugere a expansão de carregamento para veículos elétricos e movidos a hidrogénio, bem como uma rede de abastecimento a hidrogénio nas cidades, o presidente da ANTRAM indica que se está a ignorar o facto de que, atualmente, ainda não está disponível nenhum veículo pesado de mercadorias movido a hidrogénio. Em relação à rede elétrica, aponta que o Governo não deveria apenas focar essa rede nas cidades, mas onde circulam as viaturas pesadas. Além disso, indica que o setor do transporte de mercadorias apenas abrange uma parte da distribuição citadina. “O transporte rodoviário nacional, entre aglomerados populacionais, fábricas, indústrias e portos, assim como o transporte internacional, não só não são referidos, como também em nada são contemplados, apesar de ser uma das principais atividades exportadoras de serviço do país”, afirma.

Pedro Polónio reforça a ideia de que o transporte rodoviário de mercadorias não vai desaparecer. Ainda que se pretenda transportar a mercadoria via ferrovia ou navio, não irá acontecer no imediato “nem sequer num futuro próximo”, sublinhando que, na verdade, o transporte rodoviário vai continuar a crescer, “pois a transferência para outros modos de transporte não permitirá suportar o crescimento endógeno da economia, e dos movimentos de bens inerentes a esse crescimento”. “Acresce que falar em custos de utilização das infraestruturas ferroviárias e reduzir esses custos para corrigir distorções entre ferrovia e rodovia, chega a roçar a paródia num país onde um camião paga mais de 60 euros para ir do Porto a Lisboa pela A1”, enfatiza. Para o presidente da ANTRAM, continua-se a insistir “no erro” de apostar num ou em vários modos de transporte em detrimento de outros, deixando para trás uma visão que deveria ser “global e complementar”. “Percebe-se pelas medidas anunciadas que não existe propriamente uma política de transportes, mas sim uma política baseada em preconceitos, e em ideias demasiado simplistas (camião/comboio), o que mostra uma visão muito limitadora que nos deixa alerta”, confessa. 

Desta forma, refere que importa considerar não só todos os modos de transporte, mas também todas as fontes de energia, pois considera o transporte rodoviário “muito heterogéneo”, assim como as várias fontes de energia. “Se no transporte efetuado nas cidades pode fazer sentido os veículos elétricos, no longo curso tal é completamente inconcebível, desde logo pela limitação da autonomia das baterias”, explica. Pedro Polónio mostra ainda descontentamento com a inexistência de medidas previstas para ajudar a renovação da frota, prevendo a compra de veículos neutros em carbono, para apostar num transporte rodoviário mais eficiente, através de veículos euro-modelares, ou da diferenciação positiva do transporte por conta de outrem face ao particular. 

“Uma coisa é certa: o transporte rodoviário de mercadorias continuará a existir. Nenhum comboio, nenhum navio, barco ou avião irão conseguir entregar as mercadorias diretamente à porta de casa, fábrica ou loja”, afirma o presidente da ANTRAM. Desta forma, apela a que esta área não seja despromovida, e que se providencie condições às empresas para descarbonizar através da renovação das frotas. “Somos um setor perseverante e, por isso, não deixaremos de apresentar o nosso caderno reivindicativo ao Governo, e acreditamos na possibilidade de vir a ser reconhecido e apoiado na sua sustentabilidade”. 

“Numa primeira análise, parece-nos que o setor do transporte rodoviário de mercadorias é relegado para um segundo plano, face aos demais modos de transporte de mercadorias. Na prática, as medidas de apoio ao seu desenvolvimento e sustentabilidade são diminutas, para não dizer inexistentes.”

– Pedro Polónio, presidente da direção nacional da ANTRAM

Em relação ao tema da ferrovia e à taxa de uso para comboios de mercadorias, o diretor executivo da Associação Portuguesa de Empresas Ferroviárias (APEF), Miguel Rebelo de Sousa, refere que “é fundamental avançar-se imediatamente com esta revisão e terá de existir uma convergência com a taxa de uso espanhola, de modo a sermos competitivos no espaço ibérico, uma vez que o valor da taxa espanhola é oito vezes menor aquela que é praticada em Portugal”. De um modo geral, a APEF está “satisfeita” com as medidas previstas no programa do Governo para o transporte ferroviário de mercadorias, encarando-as como “o caminho para melhorar a competitividade da ferrovia, para equilibrar a concorrência entre os diferentes modos de transporte, e no âmbito da política europeia da sustentabilidade ambiental”. 

No entanto, a associação considera que há medidas genéricas que é preciso detalhar, nomeadamente a adoção de mecanismos de incentivo à modernização e interoperabilidade do transporte de mercadorias, e a eliminação de custos de contexto, nomeadamente limitações na formação de pessoal, e das condições de operação. Para o diretor executivo, “existem custos de contexto que penalizam a competitividade do transporte ferroviário de mercadorias. Por exemplo, é preciso liberalizar a compra de energia elétrica para a ferrovia, que continua a ser feita pela IP, e não pelos operadores; e corrigir o erro do Decreto-Lei 84/2022, que obriga os operadores ferroviários a utilizarem 75% da energia que consomem com origem em fontes de energia renovável a partir de 2025, situação que não ocorre em mais nenhum setor”. 

António Nabo Martins, presidente executivo da Associação dos Transitários de Portugal (APAT), quanto à medida da transferência modal das mercadorias para a ferrovia, corrigindo os desequilíbrios na taxação da infraestrutura, refere que “estamos completamente de acordo”, mas ressalva que apenas fica clara uma das medidas preconizadas, nomeadamente a atuação sobre a taxa de uso da ferrovia, não sendo possível prever outras medidas. “A APAT defende a definição de corredores logísticos que incluam portos, portos secos, e terminais rodo-ferroviários, estabelecendo políticas uniformes e coerentes que possibilitem esta transferência modal sem ostracizar qualquer agente deste ecossistema logístico, e no qual todos os operadores ferroviários, rodoviários, logísticos e transitários, entidades fiscalizadoras e autoridades públicas devem estar conectados, promovendo mais competitividade”, indica. 

Quanto ao impulso do transporte ferroviário de mercadorias, a APAT encara como uma “prioridade”. A associação anunciou recentemente que irá promover, apoiar e incentivar a criação de uma Comunidade de Logística Ferroviária, cujo principal objetivo passa por reunir os players deste ecossistema no sentido de ultrapassar os principais “gargalos” nacionais e internacionais que potencializam a competitividade da ferrovia. “Já percebemos a intenção de avaliar o impacto da taxa de uso. Há que perceber que outros aspetos obstaculizam o seu crescimento, tais como questões de segurança, processos administrativos, infraestrutura, investimentos e políticas europeias que vemos serem aplicadas noutros países, e em Portugal não”, explica. 

Por sua vez, Afonso de Almeida, presidente da direção da Associação Portuguesa de Logística (APLOG), indica que “no geral, as medidas apresentadas são positivas, mas são insuficientes e pouco detalhadas”, sublinhando ainda a necessidade de definir prioridades “sabendo que não existem verbas suficientes para todos os projetos prioritários para o setor da logística e transportes, é fundamental que as prioridades sejam bem definidas e que não se cometam erros que sejam difíceis de corrigir”. Quanto às medidas relativas ao transporte ferroviário,  destaca a urgência para que se terminem as ligações ferroviárias para o transporte de mercadorias em curso, e que sejam revistos os próximos passos. “É fundamental para as exportações portuguesas ser uma das opções de futuro, e o tema da bitola deverá ser bem analisado”, acrescenta. Além disso, aponta ainda a importância de definir “prioridades e timings” do TGV, pois “a ligação de Lisboa ao Porto é importante, mas a ligação a Madrid e à Europa é fundamental para o nosso país”. 

“sabendo que não existem verbas suficientes para todos os projetos prioritários para o setor da logística e transportes, é fundamental que as prioridades sejam bem definidas e que não se cometam erros que sejam difíceis de corrigir”.”

– Afonso de Almeida, presidente da direção da APLOG

Algumas das medidas relativas ao transporte aéreo contemplam: “aumentar a capacidade e eficiência de todo o setor da aviação e aeroportuário, tanto no lado dos passageiros, como no lado da carga (infraestruturas, serviços de navegação aérea, carga e conectividade)”; “melhorar as condições de processamento de carga e passageiros nos aeroportos nacionais”; e “implementar soluções inovadoras e digitais, que permitam melhorar o controlo de entradas e saídas de passageiros e carga, por via aérea, potenciando a utilização das infraestruturas à procura variada existente”. O presidente executivo da APAT refere que, nesta área, “seria um exagero dizer que está tudo por fazer, mas não é exagero afirmar que há muito a fazer”. Dada a importância deste tipo de transporte, a associação criou, no final do ano passado, o Fórum Nacional de Carga Aérea, para que se pudessem discutir, de forma central, os problemas que existem e eventuais soluções. “Ter terminais de carga adequados às novas realidades, tanto em espaço físico, dimensão, acessibilidades, mas também em todos os métodos relacionados com a segurança das cargas. Não basta atuar na parte física, mas sim também na parte digital”. Afonso Almeida, por parte da APLOG, aponta apenas que “é importante que se defina a questão [localização] do aeroporto com brevidade”, ainda que considere que, antes disso, se deveria efetuar a privatização da TAP. Se o grupo Iberia/British Airways adquirir a empresa portuguesa, poderá ter implicações na localização e dimensão do novo aeroporto, “pois não nos podemos esquecer que o aeroporto de Barajas irá ser aumentado”. 

“Já percebemos a intenção de avaliar o impacto da taxa de uso. Há que perceber que outros aspetos obstaculizam o seu crescimento, tais como questões de segurança, processos administrativos, infraestrutura, investimentos e políticas europeias que vemos serem aplicadas noutros países, e em Portugal não.”

António Nabo Martins, presidente executivo da APAT

Já para os portos, algumas das propostas visam: “concretizar os investimentos, com recurso a fundos europeus, e em parceria com os privados, que se afigurem necessários para maximizarem a utilização do potencial dos portos, pelo aumento de capacidade das infraestruturas, em especial no segmento dos contentores, e pelo aumento das ligações terrestres rodoferroviárias”; “assegurar a integração dos cinco principais portos do continente nas redes transeuropeias de transportes”; “assegurar um regime do transporte marítimo de passageiros e mercadorias na cabotagem nacional, e em particular no que reporta a obrigações de serviço público (OSP), importando a análise da sua adequação ao momento presente e, ou, eventual necessidade de revisão de forma articulada entre os Governos da República e das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira”. Sobre este tema, o presidente da direção da APLOG, aponta que “é necessário continuar, com rapidez, os projetos em curso e dar uma atenção especial ao aumento de capacidade das infraestruturas, em especial no segmento dos contentores, e pelo aumento das ligações terrestres rodoferroviárias, mas também às questões da digitalização”. Da parte da APAT, “é fácil” perceber a importância dos portos tendo em conta a localização geográfica, geoestratégica e geoeconómica de Portugal. “Não há como não investir nestas infraestruturas, mas também na infoestrutura, pelo que terão de se criar condições ao investimento público e privado, caminhando para portos mais sustentáveis, mas igualmente consideráveis para as mais importantes rotas mundiais”. 

Por último, o Governo incluiu ainda medidas de mobilidade, destacando a promoção da “eficácia da logística do transporte urbano de mercadorias e das ‘entregas de último quilómetro’ com emissões nulas”. Afonso Almeida considera urgente a implementação de projetos, especialmente em Lisboa e no Porto, que promovam a eficiência logística do transporte urbano de mercadorias, e sobretudo no last mile. “Para atingir esse objetivo é fundamental que existam melhores condições para o uso de veículos elétricos, incluindo a expansão de infraestruturas de carregamento para veículos elétricos e a hidrogénio nas cidades”, defendendo ainda a definição de qual será o futuro do hidrogénio, e a criação de uma rede de abastecimento de hidrogénio.

Poderá ler o artigo completo na edição #51 da SCMedia News.