Até há bem pouco tempo, Corona era uma cerveja mexicana que se bebia com lima no gargalo, ou um jogador do FCP – dependente da nossa escolha. Muitos de nós pensavam no que fazer na Páscoa, nas dietas pré-época balnear, ou na reta final do campeonato, no Euro 2020, nas férias e festivais de verão, ou que destino escolher para uma próxima viagem de fim de semana.

Este mundo, e estes planos, colapsaram em direto e em simultâneo em Março, suspendendo vidas, projetos e futuros. O nosso 25 de Abril foi descido por um que nos representou a todas, e o 1.º de Maio encheu a Alameda como se Pyongyang se tratasse. O planeta, hiper-globalizado nas últimas décadas, fechou-se em copas nacionalistas, auto-isoladoras, Estados de Emergência e suspensão de direitos e garantias. A economia, rampante estes últimos anos, e dispersa por um tecido económico alargado do turismo às startups, dos serviços às indústrias criativas, reduz-se hoje ao negócio internacional de materiais médicos, plataformas de entrega de comida e de streaming online e pouco mais. Milhões já perderam os seus postos de trabalho, milhares já fecharam empresas, e outros tantos encontram-se no limbo quasi administrativo do lay off, sem saber muito bem com que contar, como pagar a renda depois do verão, ou como se organizar com os miúdos em casa, 24/7. O planeta, antes colorido num arco-íris garrido, é hoje monotemático: tom cinza Covid-19. Tudo gira em torno de uma pandemia que nos tem posto os olhos em bico. E nos tornou, de um momento para o outro, em pessimistas especialistas em epidemias, processos de contágio, uso de máscaras e ventiladores. Numa gente sem praia nem jantaradas, sem copos ou música ao vivo, sem burburinho, trânsito ou abraços. E que triste é estarmos sem abraços, apressando a orientalização dos nossos costumes enquanto escolhemos os tons da prateleira e dos décors a usarmos nas zoom calls.

  • Post-Covid I: Blockchain

Talvez por ser um osso do ofício, mas tenho pensado em formas como pode a tecnologia blockchain ser utilizada na gestão e saída da crise atual, essencialmente no que respeita a dois setores que julgo essenciais para devolverem a confiança no futuro: a grande logística/supply chain e as questões ligadas com a soberania e a identidade digital aplicada a qualquer ferramenta tecnológica de controlo pandémico (como um passaporte Covid-free), ambos temas muito a debate nestes dias.

No que respeita à rede da grande logística mundial, e como muito bem apontou o World Economic Forum, assistimos nos últimos tempos ao desmembramento de muitas linhas de cadeias de distribuição, em virtude do descalabro do comercio internacional e do encerramento e controlo apertado das fronteiras nacionais. Assim sendo, centenas de setores industriais, totalmente dependentes de longas e interligadas cadeias de logística e de fornecimento, encontram-se hoje sem matérias primas primárias e/ou secundárias, não lhes restando outra forma que não seja fechar, entrar em lay off ou procurar alternativas de fornecimento. E refere, bem, o relatório do World Economic Forum que esta pode ser uma excelente oportunidade para setores inteiros colocarem na blockchain a sua cadeia logística, digitalizando-a, permitindo-lhes assim um melhor controlo sobre a origem de proveniência da sua matéria prima e no relacionamento comercial através de smart contracts com os seus fornecedores, de primeira e segunda linha, bem como os mais distantes.

A este exemplo acrescentava eu a debacle e descontrolo no acesso a certos materiais médicos, verificada pela compra de material sem qualidade e de origem duvidosa (a maioria com certificados falsificados). E estamos a falar de compras efetuadas por Estados como a Espanha, França ou a Holanda, em princípio instituições capazes e capacitadas para tratar da due diligence de forma conveniente. Ora estivessem estes produtos na blockchain, poder-se-ia ter acesso de forma transparente e verificável – no momento certo da operação – a toda a documentação e certificação correspondente ao produto em causa, confirmando-se imediatamente a legitimidade do mesmo sem riscos nem incertezas. Da mesma forma que poderia o cliente final seguir live o trajeto do seu produto, devidamente geo-referenciado, e ativar, através de smart contracts, um conjunto de obrigações comerciais que tivessem assumido (desde o transporte e transitários, desalfandegamento ou mesmo a execução de formas de pagamento, inclusive utilizando criptomoedas). Tudo à distância de um clique, como se apraz dizer; um clique que tiraria muitas dores de cabeça ao comprador final, limparia o mercado dos abutres, brokers e fishers, fornecendo ao consumidor final as garantias necessárias da qualidade e veracidade do produto, poupando uns valentes cobres aos cofres do Estado e dos contribuintes, sem referir a poupança de tempo, esta variável tão importante quando tratamos de bens de primeiríssima necessidade como o são os de proteção individual.

Uma outra aplicação de blockchain, tão ou mais importante, em minha opinião, que a anterior, tem a ver com a segurança da boa utilização da dados pessoais para providenciar garantias de imunidade individuais e coletivas em cenário pós-Covid-19. Em concreto refiro-me aos projetos e propostas que visam recolher e utilizar um conjunto dados coletados através do que cada um(a) de nós voluntaria para a rede, e através de um aglomerado de ferramentas periféricas integradas que passam pela informação gerada passivamente nos nossos smart phones e Apps, e toda a rede de vigilância digital e de recolha de dados institucionais já existente. Julgo ser este o sentido das aplicações que o Governo português (e outros, incluindo a EU) tem dado a indicação de querer desenvolver, procurando num primeiro momento identificar, rastrear, conter e gerir a pandemia, para depois – espero – utilizar estas mesmas plataformas para devolver a confiança necessária para que a população possa regressar ao espaço público e ao trabalho, à rua, restaurantes, cinemas, teatros, praia,  estádios, etc, de forma segura e capacitada em tempo real para que saibamos que estes espaços e as pessoas em nosso redor nos oferecem as condições de segurança necessárias. Será, aliás, decisivo que esta sensação de segurança seja rapidamente alcançada, se quisermos que parte do tecido económico nacional recupere nos próximos meses de verão, em especial o ligado ao turismo, hotelaria e aos serviços.

Resta neste ponto entender quem irá liderar o desenvolvimento e implementação de tais projetos, em quem cairá a responsabilidade de controlar, gerir a armazenar os dados gerados, e como este enquadramento respeitará o RGPD / GDPR e as questões ligadas à proteção individual dos dados digitais. E estranho que nesta matéria não haja quem aborde esta temática numa perspetiva que garanta ao utilizador o total controlo sobre os seus dados, através de sistemas descentralizados e encriptados, como os que podem ser proporcionados utilizando blockchain (de preferência pública) sob tutela de entidades institucionais devidamente certificáveis e verificáveis. Este é um ponto premente, na minha opinião, pois não devem novamente multinacionais do calibre da Google ou da Apple, com toda a sua boa vontade (ler com ironia), ficar com uma gigantesca base de dados à borla, e para usufruto futuro.

Este fim de semana no Expresso, por exemplo, foram diversos os artigos e notícias sobre a utilização de Apps no contexto da Covid e pós-Covid-19, e nenhum fala de blockchain. Ricardo Costa, de facto, insurgiu-se, e bem, contra o que parece ser o imperativo de colocar a Google e Apple na liderança deste tipo de soluções, mas não me parece que tenha lido na sua coluna quaisquer proposta concreta sobre como resolver esta situação de futura dependência deste gigantes tecnológicos, nem de como podemos nós, cidadãos e cidadãs, garantir em simultâneo que a nossa identidade digital, bem como os dados produzidos digitalmente, se encontram protegida, segura e sob nosso controlo. Isto porque se pensamos em utilizar um qualquer tipo de passaporte digital Covid-Free para regressarmos à normalidade (e estou certo que serão muitos os espaços privados que irão utilizar formas tecnológicas de controlo), o mesmo deverá ser certificado por entidades (públicas) que tenham em primeira consideração garantir que a soberania digital dos seus utilizadores está totalmente salvaguardada, e sob sua tutela. O que pode ser facilmente alcançável utilizando blockchain.

  • Post Covid II: Criptomoedas

No mesmo sentido da blockchain, também o uso de criptomoedas se tornou assunto neste mundo dominado pelo negócios e negociatas de materiais médicos, especialmente se seguirmos o rastro e as peripécias do dinheiro entre a Europa e a China, e verificarmos não só algumas das condições na aquisição (50% no ato da encomenda e 50% quando a mesma se encontra pronta a embarcar para Portugal, 100% à cabeça para ventiladores) como as dificuldades em garantir que determinados pagamentos cheguem a tempo ao seu destino. Recordemos para este efeito a odisseia do governo português em garantir 500 ventiladores de um fornecedor chinês, tema aliás motivador de diversos artigos e notícias em terras lusas.

Segundo reza a história, o Estado português, para assegurar estas máquinas salva-vidas, teve de garantir que entre uma sexta à tarde e segunda de manhã chegava à China a garantia do pagamento, uma operação financeira com os toques rocambolescos necessários para operar fora de horário de expediente, e que envolveu a Sonae Sierra e o BNU em Macau. Só com este apoio, e beneficiando do bom nome e acesso luso em terras do Oriente, conseguiu-se garantir que tal encomenda não seguiria outros destinos (que segundo consta seriam o Canadá). Ora pudesse o Estado Português pagar em criptomoeda, digamos Bitcoin, esta transferência seria efectuada num par de minutos, de forma quase imediata, com custos de operação baixíssimos e desprezando quaisquer impedimentos formalistas como o fecho durante o fim de semana ou outras especificidades de funcionamento, pois transferências de criptomoedas – se aceites pelas partes – comportam não somente a mesma capacidade de transporte de valor como são independentes de quaisquer intervenção de uma terceira parte (banco), e respetivas habilidades de cobrar e condicionar serviços sobre os quais não deveriam ter tamanha capacidade de intervenção. No caso destes nossos ventiladores, não foi necessário o recurso a formas de pagamento “alternativas”, mas resta saber qual o custo financeiro total de tão lesta operação, e quantos negócios não se ficaram por fazer por incapacidade de garantir que uma determinada transferência atingisse o seu destino a tempo e horas.

  • Máscaras, máscaras e mais máscaras…

Devido a estar envolvido no mundo (internacional) das Startups, em blockchain, critpoassets, e agora neuromarketing, biométricos e neurofeedback, tenho conseguido cimentar contactos em várias áreas e setores, e em vários sítios do mundo. Neste sentido, quando a Covid chegou com estalo, dei por mim a falar diretamente com diversos fornecedores e fábricas na China, com os quais tenho procurado colocar interessados à fala diretamente, assim fornecendo este acesso a quem mais dele precisa. Não coloco, que seja bem claro, nenhuma das minhas empresas nestes negócios, nem criei ou me associei a alguma empresa de brindes e outro material de escritório. Procurei sim colocar preços reais ao alcance de instituições e privados para que o erário público não seja delapidado à conta de um conjunto de abutres com acesso privilegiado. E, com pena minha, percebi que para o mercado português tal atitude tem se demonstrado incapaz de romper com alguns lobbies e relações privilegiadas, pois só assim se entende que tivessem havido vários ajustes diretos por valores muito acima dos reais, com evidente prejuízo para os contribuintes nacionais, que em última análise andam a pagar os lucros exorbitantes colocado por uns poucos em benefício próprio. Temos sempre esta mania de dar o proveito aos mesmo que sempre se aproveitam de nós.

Para terem a noção do que refiro, e ao cuidado do Tribunal de Contas, deixem-me apenas referir um par de exemplos recentes: (1) as tão apregoadas compras centralizadas no âmbito da Área Metropolitana de Lisboa, que têm servido os municípios ao redor da capital, por coincidência foram sempre atribuídos por ajuste direto a uma única empresa, a Enerre, uma das tais especializada em brindes. Para ser ainda mais específico, posso ainda dizer que sabia de antemão das necessidades expostas neste contrato, mais tarde adjudicado por 3 milhões e 600 mil euros (mais IVA), e que a AML sabia do nosso precário antes da adjudicação do mesmo, dizendo que iríamos ser considerados, o que nunca fomos. Agora perguntem qual era o nosso preço para esta encomenda… 2 milhões de euros! Ou seja, neste ajuste, a AML conseguiu desperdiçar cerca de 1.6 milhões de euros. Como e porquê nunca soube bem, pois era-me sempre garantido que toda a informação do meu lado estava devidamente compilada e colocada ao dispor de quem tomava estas decisões. E sucessivamente fui verificando que esta Enerre conseguia fechar todos os contratos, sempre com valores muito acima do que havíamos colocado em cima da mesa, e sempre com evidente perda financeira para os municípios da Área Metropolitana de Lisboa.

No mesmo sentido (2), também uma outra instituição com desígnio público me referia ter efetuado a encomenda 1 milhão de máscaras “cirúrgicas” simples a 1 euro cada, quando as mesmas – à altura – andariam por volta dos 0,40 cêntimos, ou seja uma diferença de 600.000 euros que poderiam ter sido empregues de forma a beneficiar a população e os utentes desta instituição. Esta instituição também tem os nossos contactos e os nossos preços, mas também tem preferido não levar avante qualquer consulta connosco. E acreditem que será este mais outro caso que não me parece que passe no teste do algodão, caso seja do interesse de alguém em o fazer…

E podia ainda contar-vos uma outra história que deixou, vai para um mês, 7 milhões de máscaras na China: 2 milhões prontas a embarcar num avião que me foi dito estar no ar, e outros 5 milhões em stock e preparadas para serem entregues no espaço de um par de dias. Tudo porque fui contactado numa sexta depois do almoço por alguém que se dizia estar articulado com o Estado português (e Ministério da Saúde), e que desejava ver até ao final desse mesmo dia útil uma solução capaz de resolver esta encomenda. E assim o fiz, preparando os tais 7 milhões de máscaras, devidamente certificadas, só para me ser dito mais tarde que afinal o Ministério havia saltado fora do negócio, primeiro, e que os certificados que havíamos mandado não estavam conformes, o que depois provei não ser verdade. Em todo o caso, e sem procurar ser maçador, vim depois verificar que o Ministério da Saúde não sabia da existência de algum avião, nem de tamanha encomenda. Foi-me também referido por diversos intervenientes, que afinal podia estar perante uma situação em que o broker que me contactara pretendia apenas ter em sua posse os certificados e os contactos das fábricas, para depois poder ir diretamente ao pote, e assumir-se perante um potencial comprador como representante único destes mesmos fornecedores. Em todo o caso, sendo esta matéria para um outro artigo mais detalhado, ficaram as portuguesas e portugueses privados de 7 milhões de máscaras, numa altura em que galopava a Covid em território nacional. E mais histórias destas, infelizmente, fui acumulando estas semanas, verificando (quase) sempre que no que respeita à natureza humana em situações de emergência coletiva, a chico-espertice e a ganância acabam sempre por se sobrepor à solidariedade e à vontade de contribuir para o bem comum.

Espero apenas que desta vez seja diferente, e que a estes chicos-espertos não lhes sejam abonadas as benesses e as abébias que tantas vezes lhes são oferecidas, não só porque falamos de muitos milhões embolsados à fartazana às nossas custas, mas porque nos preparamos para uma das piores crises económicas e sociais da nossa história recente.

Espero ainda, para concluir, que se consiga ir começando a olhar para o futuro com critério e sentido de oportunidade, e que os diversos atores com capacidade e responsabilidade (Estado, privados, instituições e outras organizações) consigam ser consequentes na forma como procurarão lançar as bases para o que esperamos seja uma franca e lesta recuperação social pós-Covid. E, como em tantas outras ocasiões de crise, que saibamos aproveitar a oportunidade para introduzir um conjunto de medidas e projetos que potenciem o nosso futuro coletivo, como acredito que seja a digitalização procedimental e exploração da tecnologia blockchain em áreas tão decisivas para a reentrada na nova normalidade como são o setor da logística/supply chain – que literalmente nos alimenta diariamente -, e as questões ligadas à próxima geração de Direitos Humanos: os direitos, a soberania plena e a capacidade de gestão da nossa identidade digital.

José Reis Santos, Partner co-founder | DKJ International